sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Um Licor Para Compaixão e Café Amargo





Chama-me, a moça do café, depois de atender duas mesas ao lado: Senhora! Senhora!

Podia ouvi-la, longe, como canto de sereia suplicando vida, mas não tinha a menor idéia de como atendê-la, já havia esgotado todas as existências, tempos de guerra. Tanta violência, naqueles dias, tornou minha audição dissimulada. Desligava os botões dos ouvidos, em fuga estratégica, quase que automaticamente. Gostava das pessoas, mas garantia boa distância delas, sempre. Repugnava ordens, arranjos, apelos, conversas e quaisquer coleções de palavras inúteis que essa gente adora exibir.

Havia na mesa, cappuccino, drambuie e um jornal comprado pela manhã com milhares de almas penadas no interior das páginas. Meu coração estava amargo, o café também. Meio atrapalhada bebi o licor e, logo após a primeira golada, me fiz de morta. Sabotei as notícias amassando-as com os cotovelos e velei-me, como se amasse aquele corpo o suficiente para deixá-lo em silêncio, até que a porta do bistrô se fechasse para o passado, um fim de tarde namorando a escuridão.

A jovem não arredava os pés e, tão pouco, a idéia de fazer-me ressuscitar. Temia sua paciência em aguardar minha voz, pois, talvez conseguisse obter palavras que eu abandonara pelo amanhecer, talvez devolvesse as horas do relógio e outras tantas coisas brutais.

Pensava em sua aparência levemente suicida e no que havia por trás daquela garota de avental índigo, tão limpa e sem pausas. Atravessando o salão feito gado, marcada, dentes a mostra, pra lá e pra cá, milhões de vezes, durante meses, anos. Recebendo insultos, obscenidades, parcas gorjetas e mísero salário que assassinava sonhos, porém, seu olhar continuava demitido dos olhos inalterados.

Aos sábados, o diabo já havia empurrado sua fé até a beirada do abismo, mas, a beleza sempre a impedira de pular. É que aos sábados, rigorosamente, ela fodia seu homem, como quem se droga, entre paredes anestesiadas que negavam realidades e feiúras.

O amante, um esforçado cretino consumidor de haxixe e putas, até que conseguia imprimir alguma impetuosidade aquela alma sem sangue. Sujeitinho de pouco gênio, mas manipulador de porções inocentes. Com corpo de touro e três palavras douradas costuradas a boca, era capaz de fazê-la acreditar em coisas que seriam esquecidas muito antes do silêncio. E o fazia, simplesmente, porque os dois precisavam comer da mesma merda.

A jovem, ainda, não conhecia o inferno das pessoas com mais de meio século, nós que freqüentamos os cafés bebendo e desafiando diálogos com cadáveres, assim, ela permanecia imóvel aguardando qualquer resposta, se fosse estúpida seria bem melhor, pois havia um destino a cumprir e pensava que os venenos jamais venceriam sua crença. A pequena era uma boa pessoa incurável, como fui um dia, antes de tudo me deixar pra trás.

Dentro da minha cabeça exigente de esvaziamentos, falas confessionais irritavam pensamentos, os argumentos tão escrotos quanto menstruação tentavam intimidades que não estava, minimamente, disposta a permitir.

Ah, mas o diabo trabalha duro e não se intimida com os esfaqueados, essas criaturas solitárias que desejam evitar apostas, o que é inútil. Eu carregava uma lâmina no peito, isso significava fácil abate.

Chutei, no entanto, sua bunda gorda e infernal num súbito e inexplicável encontrão. Minha verdade havia se esbarrado naquela criança e, todas as moscas lamberam minhas memórias, quando atravessei seu rosto e me encontrei ali, sem salvação, porque tudo que conhecíamos era esse grande e triste insensato fardo, o de não termos respostas.

7 comentários:

Suzana Guimarães disse...


Ira,

Há partes do texto em que me vejo. Ando assim, evitando apostas. Ando saturada. Estou com intolerância auditiva. Só raríssimas vozes me salvam.

Beijos, ótima crônica!


Suzana Guimarães - Lily

Unknown disse...

lendo-te e me vendo (com as mesmas vendas nos olhos)



beijo

Unknown disse...

toda a primavera chega depois do tempo e na maior parte das vezes, quando chega, já só queremos o outono de tão fustigados pelo inverno e de tão cansados da utopia que estamos.
impressionante, em verso ou em prosa, este registo diabolicamente humano, tão belo e cru, tão teu, como se espalhando silêncios e inquietações no equador das gargantas. talvez por nos sentirmos, igualmente, "fácil abate" e tudo ser uma questão de tempo - que é o mesmo que dizer, de "puta-vida"

beijo, ira!

Luis Eustáquio Soares disse...

sim, e aí começa a verdade: na não possibilidade dela, no fardo do roubo do comum. belo texto.
saudações,
l

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Tanto de mim que aqui senti neste belo texto, como sempre muito profundo e belo.Adorei, tinha saudades.

Um beijinho com carinho
Sonhadora

Anônimo disse...

"minha mente exigente de esvaziamentos...", outro dia li de também de lya luft: "Pensar é transgredir"

Muito, muito bom! O embate, o confronto nos é crucial.

P.S.: Ira, querida, assim que acordo vou ao blog e deparo com seu comentário logo após uma noite que tive um doce sonho com você e sua netinha.

Muitos beijos a vocês duas!

dade amorim disse...

Ira, que textos exemplares e literários são os teus!
"Eu carregava uma lâmina no peito, isso significava fácil abate." Uma visão bem crua e verdadeira do que tantas vezes nos afeta.

Beijo de admiração para você.